XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM (23/09/2012)
Entendendo a identidade de Jesus
Quem ouve e reza a Palavra de Deus sabe reconhecer em Jesus Cristo o verdadeiro servidor dos mais necessitados. Este ensinamento ele nos deixa como legado, ou seja: servir. E nós temos o dever – obrigação – de proclamar que a Igreja é serviço em todos os âmbitos. O cristão não deve ficar disputando lugares... deve ser o último e não atropelar pessoas e/ou etapas para ser o primeiro. A competição deve ser convertida em doação total de si: serviço.
O livro da Sabedoria, em sua perícope (Sb 2, 12.17-20) dá uma resposta aos ímpios “materialistas” da época que podemos encontrar em Isaías 22, 13: “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos!” Esta expressão continua sendo repetida desde o tempo de Isaías até os nossos dias. Trata-se da cultura do materialismo que prega em seus pseudo-dogmas a ausência de religião, Deus e vida futura. Esses descrentes – ímpios – encontram-se em Alexandria, no Egito, onde também está um pequeno grupo de israelitas e no meio deles o autor do Livro da Sabedoria. Pelo fato de os israelitas serem fiéis à própria lei eram perseguidos e zombados por não compactuarem com o estilo materialista da época.
Os materialistas consideram um absurdo acreditar em religião, em Deus e na vida futura. Para eles isso é algo ultrapassado. Mas o autor do Livro da Sabedoria recorda em versículos anteriores o perfil destes perversos: “a nossa vida é curta, passa como uma sombra, não há como escapar da morte; então, desfrutemos da vida e gozemos das criaturas durante a nossa juventude!” (cf. Sb 2,1-6).
Este grupo de perversos era composto pelos ricos e por aqueles que tinham estudado, sentindo-se culturalmente superiores. O pior é que no meio destes havia também aqueles judeus que abandonaram a religião de seus antepassados e uniram-se aos ímpios. Para eles o fato de existir um grupo de israelitas fiéis à própria lei, isto os incomodava; portanto, também perseguiam seus próprios irmãos.
O “ímpio” não consegue se adaptar na convivência com o “justo”. Este atrito esquenta o clima a ponto de o ímpio armar uma cilada para que o justo seja eliminado. Daí decidem: “Armemos ciladas contra o justo... provemo-lo por ultrajes e torturas... condenemo-lo a uma morte infame”. São palavras dirigidas aos israelitas que viviam em Alexandria, no Egito. Porém, um olhar mais clínico já nos mostra no horizonte o que acontecerá com Jesus Cristo. Ele também sofreu perseguição pelos próprios irmãos na fé. O que aconteceu naquela época se repete ainda hoje com todos que são transparentes em sua justiça e bondade, apenas por serem autênticos. Pode-se dizer que os pregadores de hoje que não denunciam estruturas de perseguição, exclusão e morte – os que não perturbam os ímpios de hoje – deveriam se preocupar com a responsabilidade sobre a teologia que estudaram e a catequese que ensinam.
Já a Segunda Leitura deste domingo (Tg 3, 16-4,3), nos convida a um olhar clínico e meditativo sobre a “sabedoria que vem do alto”, diferente da dos homens, muitas vezes sustentada pela inveja, calúnia e desejo de alimentar as próprias vaidades. A sabedoria divina se manifesta no homem que ama, acolhe, é misericordioso, se compadece, que compreende, constrói a paz e não é hipócrita.
Tiago, na segunda parte desta perícope, apresenta os motivos, as causas, que trazem tantas discórdias tanto entre pessoas como entre as comunidades. Em primeiro lugar ele denuncia a ganância, o acúmulo dos bens materiais, que obviamente leva à inveja os que pouco ou nada tem. Daí nasce a cultura da dominação e competição causando uma corrida como que uma maratona para conquistar os primeiros lugares: disputas humanas... Mas para os que seguem a “sabedoria que vem do alto”, estes conseguem eliminar pela raiz a causa de tantas disputas e guerras mesquinhas.
O final do texto mostra a vaidade humana. O homem pede a Deus para que capriche nos seus interesses particulares: isto é egoísmo. Devemos pedir a Deus somente a sabedoria e o discernimento para perceber que nossa maior riqueza é o serviço aos irmãos.
O Evangelho que a liturgia nos convida refletir neste domingo (Mc 9, 30-37) traz uma continuidade com o que refletimos no domingo passado: a identidade de Jesus. As multidões haviam construído um protótipo de Jesus como personagem soberano, poderoso, glorioso e vencedor. Os discípulos também acreditavam este grosso modo. Jesus sabia que seus próprios discípulos tinham dificuldade em compreendê-lo, portanto, nesta catequese ele insiste por três vezes em tratar de sua verdadeira identidade. É algo sério esta repetição. A de hoje é a segunda vez. Ele anuncia seu sofrimento, perseguição e morte, porem, anuncia também sua ressurreição. Ao mesmo tempo tenta fazer com que os discípulos se sintam inseridos neste roteiro a fim de dar suas próprias vidas.
Os discípulos “não entendiam estas palavras e tinham medo de pedir-lhe explicações” (vv. 30-32), isto porque eles imaginavam um Messias com poder temporal. Eles traziam na bagagem religiosa o imaginário de um Messias invencível, já que herdaram da catequese rabínica que o Filho de Deus nunca morreria e iria triunfar sobre todas as nações. Como então aceitar o que Jesus diz: perseguição e morte! Isto é uma derrota! Eles nem sequer tinham coragem de questionar Jesus sobre os fatos futuros.
Hoje com certeza ainda muitos preferem caricaturar Jesus em obras de arte, loiro e de olhos azuis. Esquecem que o sangue por Ele derramado é a vitória da cruz. Para isto é preciso despojar-se deste olhar alienante e encará-lo de frente, fazendo perguntas, ouvindo-o para entender e acolher a sua proposta. Muitas vezes certas práticas de piedade parecem preencher a comunicação do humano com o divino sem se importar em, de fato, rezar as palavras de Jesus e acolher o que Ele exige de nós.
Por isso a segunda parte do Evangelho mostra a pequenez do pensamento dos discípulos que ficam presos a discussões mesquinhas disputando qual deles seria o primeiro. Isto é herança dos rabinos que se preocupavam com os graus hierárquicos para defender o lugar à mesa para as refeições, nas reuniões, na sinagoga e assim por diante. Jesus sabe muito bem o que se passa na mente deles e declara a posição de cada um: “Se alguém quer ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos” (v. 35)
Na nossa cultura hodierna também vemos o culto aos privilégios, títulos honoríficos, a existência de diferentes classes, os lugares reservados, desde o Estado até a sociedade civil. Cuidado para que as conveniências sociais não se transformem em manto que oculte nossa ambição pelos primeiros lugares.
Para adquirir uma verdadeira identidade cristã é necessário despojar-se do sonho de grandeza. Uma paróquia ou comunidade não é o “ring” para disputas pelos melhores lugares, holofotes, e aplausos. A comunidade cristã é o “campo” do amor, acolhida, solidariedade e paz!
Jesus sempre demonstrou muita ternura pelas crianças. “Quem acolhe um destes pequeninos em meu nome, a mim acolhe” (vv. 36-37). Naquele tempo as mães apresentavam seus filhos para que Jesus os acariciasse. Acreditavam que um Homem de Deus traria força vital para eles. Já os discípulos não gostavam disso e tentavam censurar e impedir. Daí Jesus dá uma “bronca carinhosa” neles: “Deixai que as crianças venham a mim e não queirais impedi-las, porque o reino do céu pertence a quem for semelhante a elas”. Com isso Jesus mostra que as crianças são como que um símbolo dos valores do Reino. Todos, portanto, devem se abrir à cultura da “leveza”, compreendendo a fragilidade que cerca o ser humano. Lembre-se caro leitor que naquele tempo as crianças não eram consideradas na comunidade judaica. Juridicamente não tinham defesa alguma, pelo contrário, eram consideradas impuras por não seguirem os rituais da lei. Com este gesto significativo de Jesus, Ele ensina aos discípulos a cultura da acolhida aos mais frágeis, marginalizados, “impuros” que encontrarão na sociedade.
E hoje? A nossa sociedade sabe acolher os mais frágeis? Ou se alegra com os ídolos que crescem cada dia mais? Hoje ainda existem disputas, afinal nossa sociedade é competitiva. Sabemos que uma criança é alguém que depende completamente dos outros, sejam os pais, irmãos ou quem guarda custódia sobre ela. Daí a ideia de fragilidade. A criança não produz, só gasta, apronta em suas brincadeiras e se não por acompanhada pode até por fogo na casa ou no apartamento. A criança não usa a razão como um adulto.
No entanto, existem pessoas com mais de 40 anos que também agem como crianças. O que nossa comunidade faz para acolher “este tipo de criança”? Torna-se necessário ajuda-la a crescer, amadurecer na fé e em seus conceitos sobre o valor da vida. Mostrar que já são adultos e devem agir e pensar como adultos. Tudo dentro da forma da caridade. Catequese no grito e imposição mostra a “impureza” do discípulo missionário, que talvez, seja o primeiro carente de um abraço e de um carinho!
Dom Orani João Tempesta, OCis
Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese ddo Rio de Janeiro