Tradições antigas X Amor de Deus
Retomamos o Evangelho de Marcos, após termos refletido e meditado durante cinco domingos os textos de João. Daqui pra frente iremos meditar os textos de Marcos até o final do ano.
A purificação é um dos elementos centrais na cultura religiosa judaica. Portanto o fato de alguns discípulos tomarem as refeições “com as mãos impuras”, ou seja, sem lavá-las, causou uma reação de repúdio por parte dos mestres da lei. Esta reação nem está muito ligada às normas higiênicas, mas sim à transgressão da lei judaica. Neste sentido os rabinos são muito severos, rígidos. Até o uso da água para a lavagem do corpo exigia seis tipos diferentes (aromas diversos). Nisto os israelitas eram muito rigorosos. Quando dominavam uma terra estrangeira, deixavam passar cinco anos até que o “solo ficasse purificado” para daí consumir os primeiros frutos. O desconhecimento das normas era considerado imperdoável, e ainda mais, considerado fonte de maldição. Cada transgressão era considerada como um desafeto a Deus e à tradição.
Estamos como que no contexto da multiplicação dos pães. E daí vem a pergunta: “Qual é a pureza exigida para quem se aproxima do banquete eucarístico?” para compreender a resposta temos o diálogo entre Jesus e alguns escribas vindos de Jerusalém. Daí a conversa começa lembrando Ex, 30, 17-21: referente às carnes dos sacrifícios no templo, onde os sacerdotes deviam sempre primeiro lavar as mãos e os pés. Por isso também alguns grupos de leigos transferiam para suas casas os mesmos costumes realizados nos templos. Com isso a prática foi se difundindo na forma diária antes de todas as refeições. E Jesus quer ensinar que a purificação se dá na caridade com os irmãos.
A impureza não deve ser confundida com a culpa moral. Então imagine, amigo leitor, como ficava a mulher no período da sua menstruação. A impureza era considerada simplesmente no fato de tocar uma pessoa doente, um animal ou determinados objetos. Por isso a purificação devia se dar principalmente antes das orações, pois não se devia entrar em contato com o divino sem antes se lavar. Havia inclusive uma fórmula para ser recitada durante a purificação: “Bendito sejas tu, Senhor Deus, nosso rei do mundo, porque nos santificaste com teus preceitos e nos ordenastes lavar as mãos”.
Já para os pastores, e agricultores daquele tempo, eles eram evitados e considerados impuros, afinal se preocupavam com outras coisas para eles mais importantes: a sobrevivência da família. E no tempo de Jesus as purificações têm valor muito nobre, o mesmo que os rabinos davam à Palavra de Deus.
Assim, como vemos na primeira leitura (Dt 4,2), os mestres da lei conseguiram amarrar normas que nunca poderiam ser ampliadas, multiplicadas ou alteradas.
Mas Jesus chama atenção para alguns perigos no valor destas tradições. Alerta para um perigo da absolutização dos rituais, afinal quem as cumpre pode achar-se em dia com Deus. Até os monges de Qumran defendiam que “ninguém pode santificar-se em rios ou lagos nem purificar-se com qualquer banho de água. A impureza permanece na medida em que são desprezados os mandamentos de Deus”.
Jesus quer a renovação do coração e ataca práticas religiosas daqueles mestres da lei que obrigavam as pessoas a obedecerem códigos jurídicos. Jesus afirma categoricamente que as aparências, formalismos, solenes liturgias e demais, para Deus não interessam. Chama isto, recordando os profetas Isaias e Amos, de “farsa religiosa”. “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão me prestam seu culto, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens”. Para refletir um pouco mais, basta lembrar o que Jesus diz em Mt 9, 13; 12,7: “Eu quero misericórdia e não sacrifício”.
Considerando o Evangelho de hoje podemos dizer que todos os que cumprem as normas defendidas como naquele tempo não passam de hipócritas, pois estão distantes da lei maior: o amor ao próximo. Jesus chama a atenção do perigo da hipocrisia.
Indo mais adiante na reflexão devemos lembrar também das nossas práticas de piedade imaginando que se cumprimos com algumas orações já estamos de bem com Deus... porém, viramos as costas para os que mais sofrem, os empobrecidos. Fazer todas as orações diárias e fechar os olhos e os ouvidos para os mais necessitados que nos clamam nada mais é do que reproduzir uma “pseudo-purificação”. Todas as relações humanas, tanto dentro da família como entre amigos deve sempre, diariamente, ser construída na criatividade, harmonia, atenção e disponibilidade total. Deus não curte nossa relação com ele na observância de códigos jurídicos, enquanto nos afastamos dos nossos irmãos.
Por isso é sempre necessário ser maduro, livre e sincero com as pessoas, impulsionados pela luz do Espírito Santo. O que Jesus deseja é que não se confundam as práticas rituais com aquilo que Deus pede da gente: o amor ao próximo. Tudo brota do íntimo e não das aparências externas. A moralidade nas causas vistas está na forma como que trato o ser humano, meu irmão. A melhor purificação que Jesus nos orienta é um verdadeiro exame de consciência dos nossos atos. Nosso coração é o espaço purificado onde Jesus quer morada.
Dom Orani João Tempesta, OCis
Arcebispo Metropolitano da Arquidiocese do Rio de Janeiro